Sabedoria popular reivindica seu lugar na construção do conhecimento na agricultura

Por Verônica Pragana – Asacom

A gente quer construir uma ciência que se paute no diálogo de saberes | Foto: Beatriz Brasil

O último painel do V Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores Experimentadores – Diálogo entre a sabedoria popular e a ciência para a construção dos conhecimentos da convivência com o Semiárido – trouxe para o espectro de ação da ASA mais um grande desafio: aproximar estas duas formas de saber que coexistem nos territórios, principalmente, naqueles onde a agroecologia se instalou. O V ENAE terminou nesta sexa-feira (15) no Cariri cearense.

Ao mesmo tempo, este painel anunciou que estamos vivendo um intenso momento de mudanças de paradigmas no pensamento dominante, que pauta a ciência moderna. A intencionalidade de criar, cada vez mais, uma afinação entre o saber popular e a ciência moderna diz que a racionalidade, que sustenta a forma de pensar hegemônica, não é capaz de criar soluções para as crises que o planeta vive. E que é urgente sintonizar o saber intelectual com o saber empírico e intuitivo.

A professora Gema Galgani, da Universidade Federal do Ceará e pesquisadora do feminismo e das lutas de classe, falou exatamente sobre isso: “Me sinto muito feliz de estar aqui porque me sinto inteira, quebro aquilo que a ciência moderna diz para gente que a gente tem que trabalhar na pesquisa com racionalidade, construindo uma verdade universal, construindo objetividade. E quando chego aqui e venho do feminismo, o feminismo já quebrou isso, quando diz pra gente: ‘olha a pesquisa tem que ser situada lá na realidade das mulheres, onde as mulheres estão vivendo a opressão’. Então aqui a gente está dizendo que a pesquisa tem que ser situada na realidade de vocês a partir do corpo, da vivência, da experiência de vocês. É neste sentido que a gente vai quebrando com esses falsos paradigmas da falsa ciência moderna e construindo uma outra ciência. Essa ciência que nasce das pessoas, que nasce da experiência, construindo o conhecimento a partir destas metodologias. Vocês não imaginam o quanto é aprendizado pra gente dialogar com as produtoras e guardiãs de sementes, escutar as experiências e inovações de vocês. Tudo isso pra gente são conhecimentos da experiência, da vida, da vida plena, da vida integrada entre racionalidade e emoção”.

Até chegar neste ponto, Gema fez uma construção histórica da abertura das primeiras faculdades e universidade no Brasil associando-as a uma necessidade da classe dominadora que era (e é) os donos das terras e afirmou que esse lugar de partida influenciou todo o conteúdo e metodologia que reproduz a forma de pensar da classe patronal, tornando-a hegemônica na sociedade. “Quando a gente se submete ao opressor é porque estamos pensando como ele. A captura de nossos pensamentos é perversa porque captura também a nossa alma, os nossos sentimentos”. Segundo ela, tudo nos leva a perder a noção dos direitos, inclusive, o de uma educação digna e de chegar a um doutorado. “Por que não?”, questiona ela para a plateia formada 90% por agricultores e agricultoras, dos quais cerca de 10% fizeram curso técnico ou superior.

Para o representante da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Romier Sousa, outro integrante da mesa, o sistema científico brasileiro não está à serviço da sociedade, principalmente, no campo agrário. “Ele serve a um punhado de empresas, a uma meia dúzia de latifundiários, de grandes empresários, ao pessoal do agro e que muitas vezes invisibilizam todas as práticas, experiências que os/as agricultores/as, os campenses, as comunidades e povos tradicionais têm construído ao longo da história.”

“A agricultura surge há 10-12 mil anos. E, desde quando nasceu até mais ou menos o século 18, todas as inovações dentro da agricultura eram produzidas por quem praticava a agricultura, ou seja, por agricultores/as. Isso é rompido quando surge uma chamada ciência que desvaloriza tudo o que não é produzido a partir da academia e passa a ser detentora deste saber absoluto que, alguns autores chamam de ciência dominante”, conta Romier.

Segundo ele, a ABA surge em 2004 para construir uma força dentro da academia para negar esta perspectiva. “E, pra isso, a gente precisa frisar novas formas de produzir conhecimento. E eu quero dizer que esses dias que tive aqui neste encontro, a gente percebeu várias formas, várias tecnologias. A ASA tem uma experiência no Brasil que precisa ser expandida para o resto dos territórios porque o que vocês têm feito nesta lógica de agricultores e agricultoras experimentadores/as é algo fantástico, porque a gente pensa enquanto diálogo de saberes.”

Olhando para a agroecologia, Romier aponta que o diálogo de saberes acontece nos territórios e que deve congregar vários sujeitos que promovem a pesquisa na localidade como as unidades das Embrapas, as universidades e os institutos técnicos federais.

E foi sobre esta perspectiva da territorialidade que a representante do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), a Fernanda Rocha, deu a sua contribuição no painel. A partir do lugar de financiadora, ela destacou uma pergunta que existe para o setor do BNDES que apoia as iniciativas para a transformação social: Como criar processos que estimulem a inovação dos agricultores/as? Fernanda frisou que entende por inovação não só tecnologias, mas fundamentalmente processos de construção de conhecimentos e também relações que acontecem no território.

Fernanda trouxe elementos que surgem a partir dos projetos financiados pelo BNDES, como os programas Uma Terra e Duas Águas e o Sementes do Semiárido, da ASA, o Ecoforte, da Articulação Nacional de Agroecologia, e o Inova Social, da Embrapa em parceria com a ASA para a realização de ensaios comparativos para identificar as características das sementes crioulas, comparando com as sementes usadas pelo governo nos programas públicos de distribuição de sementes, a partir da metodologia participativa, garantindo o envolvimento dos/as agricultores/as. Em todos estes programas citados por Fernanda, as relações estão na centralidade. “É nos territórios onde estes programas interagem, trazendo sinergias entre eles”, trazendo na sua fala a mudança do olhar do financiador que transfere sua atenção de ações isoladas e instrumentais para apoiar processos de desenvolvimento e fortalecimento de redes.

A partir dos diversos elementos trazidos nas falas de Gema, Romier e Fernanda, o representante da ASA, Alexandre Pires, fez uma fala alinhavando alguns elementos com a capacidade de ação da ASA, enquanto rede de grande capilaridade que se faz presente em grande parte do território do Semiárido. E a costura se deu em forma de questões: “como é que a gente, enquanto rede formada por redes nos territórios, dialoga com as instituições de pesquisa para apresentar as demandas que interessam aos agricultores e agricultoras familiares?” e “como entender esse processo de pesquisa quando os agricultores e agricultoras dizem que não querem ser objeto do estudo e sim sujeitos participantes?”

Ao elaborar estas e outras perguntas, o coordenador executivo da ASA Brasil pelo estado de Pernambuco trazia à tona elementos que se apresentaram com força durante os três dias e meio de encontro que reuniu 250 pessoas, em sua maioria campesinos e campesinas dos 10 estados do Semiárido. Um destes elementos é que essas demandas por pesquisa não podem substituir o conhecimento popular. “Estamos chamando a responsabilidade das instituições de pesquisa para nos ajudar a aperfeiçoar as nossas práticas, os nossos saberes populares de modo a responder também as necessidades práticas, de modo que as universidade e instituições de pesquisa cumpram seu papel social, cumpram seu papel de pesquisa a serviço do povo, dos trabalhadores.”

ASA e ABA juntos na construção do próximo Congresso Brasileiro de Agroecologia | Foto: Beatriz Brasil

CBA – Sobre o Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), promovido pela ABA e que acontece no segundo semestre deste ano, em Sergipe, Alexandre reafirmou uma posição que a ASA vem assumindo de construir este evento em parceria com a ABA e demais organizações do campo da agroecologia. “Que o CBA seja uma construção de um conjunto de redes que atuam no Semiárido, no Nordeste para que o CBA tenha também a cara desta região, desta diversidade que é a região Semiárida”. O tema do CBA tem tudo a ver com a temática central do encontro de agricultores/as experimentadores e esta afinidade foi intencional. O encontro encerrado hoje, com este painel, é o primeiro passo da ASA rumo a este Congresso que tem ganhado força a partir da ampliação da envergadura da agroecologia no Brasil e no mundo como um modelo de agricultura capaz de responder às crises mundiais com relação à fome, às mudanças climáticas e à destruição da natureza.

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