Compartilhando saberes para a convivência com o Semiárido

Por Comunicadorxs populares da ASA

As oficinas trataram sobre diversos temas | Foto: João Marcos

Um chá, um jeito de cozinhar um alimento uma forma de produzir um outro; o dia certo de plantar a semente, o mês certo de colher. Na conversa rotineira nos terreiros, nos quintais e reuniões, as agricultoras e os agricultores costumam trocar saberes. E é com o objetivo de facilitar este intercâmbio de saberes que as oficinas temáticas realizadas durante o V Encontro de Agricultoras e Agricultores Experimentadores trouxeram temáticas que vão desde a criação de animais até a cultura da cura com as plantas, a partir da experiência das meizinheiras.

Se a gente não se organizar, nada vai ser feito”

Eu quero ser, me deixa ser

O que eu mereço

Eu quero ser quem sou

Eu tenho meu valor

E este não tem preço

Oficina de mulheres | Foto: Verônica Pragana

A estrofe da música Apelo de Mulher, um hino para as mulheres do campo no Semiárido, foi entoada pelas participantes da oficina de ‘Auto-organização das Mulheres’. A conversa começou com a história de um grupo de mulheres do sertão de Sergipe, chamado de “Resgatando a sua história”, e continuou com o relato sobre a rede de agricultoras experimentadoras presente em 14 municípios do território da Borborema, no agreste da Paraíba. Ambas as apresentações evidenciaram a força, união, perseverança e coragem das integrantes das iniciativas.

Histórias inspiradoras para as presentes, que ouviram – de forma muito clara e repetida por diferentes vozes e jeitos – que para vencer o machismo, é fundamental que as mulheres se organizem. “Se a gente não se organizar, nada vai ser feito”, anuncia dona Netinha, coordenadora do grupo de mulheres de Sergipe. Uma frase que fez sentido em todos os momentos da oficina, quando se falava do empreendedorismo das mulheres ou da violência contra as mulheres, da psicológica até a física que ceifa a liberdade, a alegria e a vida de muitas.   

Sistemas de reuso de água e quintais produtivos transformam a vida das mulheres

Oficina de reuso | Foto: Fernanda Cruz

A Oficina de Reuso de Água e Quintais produtivos envolveu 24 pessoas, sendo a maioria expressiva de mulheres. O quintal é um espaço reconhecidamente protagonizado por elas que, normalmente, aproveitam a chegada da água para trabalhar com horta e com as plantas medicinais ao redor de casa. As cearenses Angélica e Ozelina, mãe e filha, respectivamente, assim como Margilane Luzia da Silva, do Rio Grande do Norte, contaram como o sistema de reuso de água contribuiu ainda mais com o incremento da produção e, consequentemente, com o aumento da renda.

Além de explicarem o funcionamento do sistema, as agricultores destacaram os desafios e as conquistas desse trabalho. Margilane conta que a iniciativa deu mais visibilidade ao trabalho das mulheres. “O sistema de reuso possibilitou que a gente melhorasse nosso trabalho, mas também nos fez acreditar que podemos fazer as nossas coisas sem precisar dos homens”, defendeu ela. Flávia Ângela da Silva assistia atenta à palestra e contou que havia deixado seu trabalho como Agente Comunitária de Saúde para voltar a ser exclusivamente agricultora e que esse momento era um incentivo para a decisão que havia tomado. “Eu tenho meu quintal, minha plantação de palma e saio daqui com vontade de colocar muito mais coisa em prática”.

O segredo da criação é o manejo

Oficina criatório no Semiárido | Foto: Elka Macêdo

Nos terreiros dos povos que habitam as zonas rurais do Semiárido é comum encontrar criação de galinhas e porcos, já nos terrenos maiores, próximos ao roçado estão as cabras, ovelhas e o gado. Criar animais é cultural e para manter a criação nos períodos de estiagem são muitas as saídas que as agricultoras e os agricultores encontram para garantir alimento, água e boa produção. E estas alternativas foram o mote da oficina de criatórios animais do Semiárido que aconteceu na manhã de hoje (14). As experiências que introduziram a oficina foram as da agricultora Ivoneide Josefa dos Santos, do município de Cumaru (PE), que cria ovelhas, galinhas e bovinos; e de Flávio Luiz dos Santos, agricultor baiano que cria cabras leiteiras.

 Na ocasião, viu-se que tem um jeito para produzir cada coisa: carne, leite ou ovos. E tem manejo diferente para cada tipo de animal. Se algum bicho adoecer, a alternativa é procurar nas plantas da caatinga e nas ervas a cura para o mal. No Debate, Cida Silva, agricultora do semiárido sergipano, contou a sua experiência com o uso da gliricídia e a maniçoba como ração, já Eduardo que mora na Bahia lembrou a necessidade de cultivar bem as plantas que servirão para alimentação dos animais. “É importante manter a nutrição da planta porque quando a planta está bem nutrida não adquire pragas”, afirma.

Manejo de Sistemas Agroflorestais: jeito de produzir preservando a natureza

Oficina agrofloresta | Foto: Francisco Barbosa

Na oficina que debateu o manejo de Sistemas Agroflorestais (SAFs) na Caatinga foram apresentadas as experiências  dos agricultores Sebastião Alves da Silva, conhecido como Barri, morador da comunidade rural Sítio Lagoa Comprida, do município de Ouricuri, em Pernambuco  e Antônio Rodrigues do Rosário, conhecido como Golinha, do Assentamento Tabuleiro Grande, do município de Apodí, no Rio Grande do Norte.

Barri falou um pouco sobre seu sistema agroflorestal, de como foi o início dos trabalhos, quais os desafios, e deu dicas de como começar a trabalhar com o SAF. “O sistema agroflorestal tem como objetivo tornar a terra produtiva novamente. O primeiro passo do sistema agroflorestal deve ser: observar a área que você quer implantar; plantar de forma diversificada culturas de ciclos curtos, médios e longos; também é importante observar quais são as plantas nativas. É importante ter plantas produtivas e adubadoras; e ter o envolvimento de toda a família”, comenta. Já Golinha falou um pouco sobre a criação de abelhas, e de animais como caprinos e ovinos e sobre algumas técnicas para manutenção do SAF. “Para uma melhor manutenção do sistema agroflorestal é importante sempre fazer um acompanhamento da poda das árvores”, explicou.

Ancestralidade e identidade de povos do Semiárido

Oficina comunidades tradicionais | Foto: Nelzilane Oliveira

A ancestralidade pulsava nas falas dos/as participantes da oficina sobre comunidades tradicionais. No grupo uma mistura de lutas. Quilombolas, indígenas, quebradeiras de coco, guardiãs de sementes, agricultores/as dividindo as dores e as conquistas de comunidades que resistem. Na oficina foram apresentadas duas experiências. A primeira foi a Associação das Quebradeiras de Coco da comunidade Canto de Ferreira município de Chapadinha no Maranhão.  Na comunidade são 114 famílias, com 15 mulheres que se organizaram e conseguiram transformar o cenário. “Tenho orgulho de dizer que sou quebradeira de coco. Foram anos extraindo óleo no pilão, mas isso mudou com a nossa agroindústria”, afirma Gracilene de Jesus, 46 anos.

A segunda apresentação foi da comunidade Sítio Feijão e Posse, município Mirandiba – PE. A ancestralidade presente na fala de Maria José, que relata as dificuldades e os ganhos da comunidade. A terra de 42 hectares da família passou por grandes desafios, até se reconhecer e entender o significado da palavra quilombola. “Após criarmos a associação em 1995, inclusive fui a primeira presidente, foi que comecei a pesquisar e aprender sobre associativismo e organização. Criamos o Fórum das Mulheres, com este muitos avanços e aprendizado. Nós mulheres chamadas de loucas levamos 9 poços artesianos, acesso ao PAA e PNAE, cisternas e quintais produtivos. As mulheres são as protagonistas na comunidade a grande maioria das atividades e ações são realizadas por nós” ressalta Maria José.

Cooperação e inovação social são bases do acesso a mercado para agricultores/as do Semiárido

Oficina feiras e acesso a mercados | Foto: Hugo de Lima

Duas das boas experiências que estão oferecendo mais renda às famílias envolvem associação e ideias criativas. Elas foram a base das apresentações feitas na Oficina de Feiras e Acesso a Mercado. Apresentadas por mulheres, a primeira experiência veio do Semiárido baiano, do município de Santa Luz, na região do Sisal e foi apresentada por Valmira, da Associação do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Agricultura Familiar de Santa Luz – AMMTRAFAS. Através dessa associação, cerca de 250 mulheres produzem bolos, broas, sequilhos, polpa de frutas, beijus, farinhas de tapioca e pão de leite, além de artesanatos de diversos tipos organizados e distribuídos através de várias iniciativas de comercialização, como uma loja que concentra diversos desses produtos – a Maria Bunita, um serviço de buffet –  além das vendas para o PNAE.

A segunda experiência compartilhada foi a da Feira da Agricultura Familiar e Economia Solidária no município de Igaci, organizada pela Associação dos Agricultores Alternativos – AAGRA vem sofrendo também com a diminuição de clientes por causa do corte de outros programas essenciais, como o Bolsa-Família e até revisões em aposentadorias rurais do município. Para enfrentar a crise, a ideia é fortalecer a moeda social criada pelo grupo, que é chamada de “Terra”. O objetivo da moeda social, que é amplamente aceita dentro de Igaci, é que o dinheiro continue girando no próprio município, evitando que o lucro obtido pelas vendas no comércio local seja levado em forma de gastos e compras em municípios vizinhos.

O Papel da assessoria técnica para a convivência

Oficina de Ater | Foto: Beatriz Brasil

A importância do diálogo entre técnicas/os e agricultoras/es norteou as discussões durante o seminário realizado com a rede de assessoria técnica, na manhã desta quinta-feira (14). O debate foi mediado por Paulo Petersen, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA), e também contou com as falas de Antonio Barbosa, coordenador do P1+2, que falou sobre o Programa Um Milhão de Cisternas, e Giovanne Xenofonte, da Caatinga, que falou sobre a Construção Coletiva de Conhecimentos no Território do Araripe. “As apresentações foram muito precisas ao trazer os elementos para o debate. Colocamos o debate em um alto nível de abstração. É um processo de evolução”, elogiou Paulo Petersen.

O projeto ATER Mulheres, desenvolvido pelo Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria, foi uma política pública específica para as mulheres e com equipe técnica composta por mulheres. Seu exemplo serviu como base para se pensar o papel da assessoria técnica na execução de projetos de fomento voltados para mulheres durante o V ENAE.  “A política pública que traz esse olhar específico para mulher com equipe feminista, com fomento para aplicação nos quintais, reverbera no empoderamento das mulheres, no acesso à renda e na luta pela divisão justa do trabalho doméstico. Nós, técnicas e técnicos, temos esse papel de contribuir nessa problematização, que venha a colaborar com a luta das mulheres”, afirmou Andrea Sousa, coordenadora de projetos do Esplar.

Não deixar a cultura morrer

Oficina meizinheiras | Miguel Cela

Olhos e ouvidos atentos aos aprendizados que o grupo de meizinheiras, benzedeiras e raizeiras estava trazendo. O grupo de mulheres do Semiárido foi composto por cearenses e mineiras que, juntas, fizeram seus conhecimentos crescerem e espalharem-se. “Nós não sabemos tudo, mas também não sabemos nada. Volto [para casa] com muita força”, diz a mineira Didy, que completa afirmando que ouvir os outros agrega conhecimentos que não sabia.

Didy foi uma das experiências apresentadas na oficina. Ela trouxe seus remédios caseiros, xaropes, chás, lambedores e contou sobre as homeopatias que produz e que não pôde trazer. Já grupo cearense, composto por meizinheiras do das Batateiras e de Chico Gomes, contou dos sabonetes. E demonstrou aos participantes — que puderam levar uma barrinha para casa —, a produção deles, desde a essência das plantas, passando pelo derretimento da glicerina, até o produto final, embalado e pronto para a comercialização e consumo. Após as apresentações, as receitas anotadas e as dúvidas tiradas, as pouco mais de vinte pessoas presentes puderam, então contar suas experiências.

“ As sementes e os segredos são fonte de  resistência ”

Oficina sementes | Foto: Kátia Rejane

Com essa certeza que agricultores e agricultoras, se reuniram na oficina de sementes na manhã desta quinta-feira (14). As partilhas foram desde como fazer a gestão dos bancos até de que modo a ciência pode contribuir com o fortalecimento das sementes crioulas. O agricultor de Santana do Ipanema (AL), Sebastião Damasceno apresentou sua experiência e emocionou com seu jeito alegre e espontâneo de falar das sementes. Já o agricultor José Ferreira conta que quando fez teste de transgênica em suas sementes e o resultado foi de que 100% crioula sentiu uma grande emoção.

A importância das mulheres como guardiãs de sementes foi um ponto de destaque na roda de conversa. “Eu era uma semente dentro da cabaça, mas fui descoberta e hoje vou ao encontro de outras pessoas ajudá-las a guardar e ter sementes de qualidade“, conta Renilda Maria do Piauí. Entre os principais desafios os participantes destacaram os transgênicos como principais ameaças à agrobiodiversidade e o agronegócio com os pacotes “da morte”.

Comunicação popular

No segundo dia do V ENAE, agricultoras e agricultores de diversas regiões do Semiárido, puderam conhecer e refletir sobre a comunicação popular. Na oficina com este tema, foram apresentadas a Rede de Comunicadoras e Comunicadores da região Semiárido Mineira e também a rádio comunitária Boa Nova FM do Piauí.

Edianilha Pereira, comunicadora popular que faz parte da Rede de Comunicadoras e Comunicadores da região Semiárida Mineira destacou que a comunicação popular ainda precisa ser fortalecida nacionalmente para valorização das vozes das famílias agricultoras, mas que também é importante reconhecer outras(os) protagonistas nesta história, fazendo um recorte a população LGBTQ+, negras(os) e povos de comunidades tradicionais, contribuindo ativamente em espaços coletivos como feiras, oficina e intercâmbios, em busca de novas alternativas de união e integração dos saberes populares aos meios comunicação.

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